quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Região Demarcada do vidro da Marinha Grande

Para realizar o trabalho sobre a região demarcada do vidro da Marinha Grande, parti do princípio de que a região demarcada do vidro está profundamente entranhada na história da Real Fábrica de Vidros, da Nacional Fábrica de Vidros ou Fábrica Escola Irmãos Stephens. Ao longo da sua história estes foram os seus três nomes.
A Marinha Grande é uma cidade, que foi primeiro de lenhadores, depois de vidreiros. Ao contrário de outras cidades e vilas de Portugal, que nasceram e cresceram à volta de uma igreja ou castelo, a Marinha Grande cresceu em redor de uma fábrica de vidros.
Ao longo da pesquisa que efectuei para este trabalho, encontrei vários relatos, afirmando que o fabrico de vidro, em Portugal, começou por volta do século XV.
A passagem de uma produção artesanal bastante limitada, para a produção mais industrial, foi muito lenta.
Embora conheça relatos que fazem referências à existência de pequenos fornos para a fabricação de vidro, entre os séculos XV e XVIII; irei, no entanto, destacar as duas regiões do País fundamentais para o desenvolvimento de indústria vidreira em Portugal: Coina e Marinha Grande.
Para se conhecer quais os motivos que levaram à implementação da indústria vidreira nestas duas zonas de Portugal, é importante conhecer quais as condições favoráveis que existiam nas mesmas. No fundamental eram duas:
- A primeira, era a madeira, para servir de combustível. As duas zonas tinham bastante. Em Coina a mata da Machada e na Marinha Grande o Pinhal do Rei.
- A segunda, eram as areias de origem caulina em Coina e na Marinha Grande as de origem siliciosa e a argila. No pinhal do Rei também havia muita Erva-Maçaroca, que era utilizada como carbonato de sódio.
Na freguesia de Coina, situada no concelho do Barreiro, entre 1719 e 1747, existiu a Real Fábrica de Vidros de Coina. Nos vinte e oito anos em que laborou, produziu essencialmente: vidro cristalino, vidro para janelas, (na altura eram muito usadas as janelas em guilhotina) e vidro verde para garrafas. O seu proprietário foi o cidadão Irlandês, John Beare.
Devido à ameaça de esgotamento do combustível (madeira) para alimentar os fornos, John Beare pensou e conseguiu deslocalizar a Real Fábrica de Coina, para a Marinha Grande assim como a tecnologia de que dispunha na altura.

No ano de 1748 iniciou-se na Marinha Grande a produção de vidro, nos primeiros anos, foi a continuação da tradição trazida de Coina.
Em 1769, a Real Fábrica de Vidros passou a ser propriedade do cidadão Inglês Guilherme Stephens que, com o apoio do Marquês de Pombal, de quem era amigo, conseguiu obter a permissão do rei D. José I para gastar toda a lenha do pinhal que fosse necessária para a laboração da fábrica, durante quinze anos; privilégio, que se tornou permanente, segundo o alvará Régio de 7-VII-1769.
Além disso, o Tesouro emprestou a Stephens, sem juros, a quantia de 32 mil reis (ceca de 150€ na moeda actual) para investimentos na empresa.
Sob a administração de Guilherme Stephens, a fábrica teve um grande desenvolvimento, vieram mestres vidreiros Ingleses e Italianos, para ensinar os vidreiros Portugueses.
Guilherme Stephens dedicou uma grande atenção à formação dos seus operários, assim como das suas famílias, tanto no ensino como na cultura. Conta-se que, o cultivo de alfaces, na região da Marinha Grande, começou também nessa época.
O primeiro forno de vidro, sob a administração de Guilherme Stephens, foi aceso em Outubro de 1769 e utilizado, em particular para produzir vidraça,
fabricada pelo processo de manga de vidro. Em 1770, foi aceso um forno para a produção de cristal.
Com a morte de Guilherme Stephens em 1802, a posse da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, passou para o seu irmão João Diogo, que a manteve até 1826, altura em que a doou em testamento ao Estado Português, assim como todos os seus bens.
Com a tomada da posse da empresa pelo Estado Português, foram vários os gestores, assim como arrendatários, que passaram pela mesma. Irei salientar apenas alguns deles.
- 1827, a gestão da empresa foi entregue a uma sociedade em que o Barão de Quintela e o Conde de Farrobo, foram as figuras mais importantes.
- 1848, foi nomeado um negociante, Manuel Joaquim Afonso, pessoa muito bem relacionada dentro do poder central. A ele se deve a introdução da primeira máquina a vapor na empresa.
Apenas para se ter uma pequena ideia da importância que a Real Fábrica de Vidros tinha na Marinha Grande, apresento a evolução a nível de empregados ao longo dos anos.

Ano de referencia
Empregados
1840
276
1847
286
1852
304
1863
320
Em 1864, o Estado Português, arrendou ao Conde de Azarujinha a Real Fábrica de Vidros, para assim poder continuar em laboração.
No período entre 1864 e 1894, é instalada na empresa bastante tecnologia, nomeadamente, motores hidráulicos na máquina a vapor assim como vários mecanismos auxiliares.
Nessa altura, o número de operários, quase duplicou, em relação ao censo de 1863, (320). No entanto, começou a praticar-se a política de redução de salários aos operários.
A população da Marinha Grande sofre então um grande crescimento, são introduzidas várias melhorias, sobretudo nas vias de comunicação.
Após uma visita dos Reis de Portugal, em Agosto de 1892, a Marinha Grande passa a ser vila.
Nos finais do século XIX e princípio do século XX, com a grande procura de vidro em Portugal, foram criadas várias empresas, das quais vou destacar as mais importantes.
Tabela das empresas criadas nos finais do século XIX e princípios do século XX:

1889- Santos Barosa
1894-Nova Fábrica de Vidros Ivima
1894-A Central (actual Barbosa e almeida)
1899-Ricardo Gallo
1906-Guilherme Pereira Roldão
1906-Manuel Pereira Roldão
1913-Dâmaso (Vieira de Leiria)
1917-Marquês de Pombal (Crisal)
1941-Covina
1944-Atlantis , Cristais de Alcobaça
Em 1920, estavam em laboração na Marinha Grande dez fábricas de vidro, quatro em construção e uma projectada.
Em 1924, foi nomeado administrador da Real Fábrica de Vidros, o Eng. Acácio Calazans Duarte.
Calazans Duarte, é considerado o gestor mais importante que passou pela Real Fábrica de Vidros, o seu trabalho foi fundamental para a recuperação da empresa, praticamente arruinada aquando da sua nomeação.
Para além do seu papel como gestor, a ele se deve a primeira escola industrial da Marinha Grande, assim como a obrigatoriedade da escola para todos os menores que então trabalhavam na fábrica. Foi director da empresa até 1966.
Vinte e um, era o número de fábricas de vidro existentes na Marinha Grande, em 1948.
Em 1954, a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, passou a chamar-se Fábrica Escola Irmãos Stephens.
Nos finais dos anos cinquenta, a F.E.I.S., (denominação porque começou a ser conhecida), iniciou um grande processo de reestruturação a todos os níveis, sendo de salientar, no que diz respeito à produção, que além do vidro tradicional, começou a ser fabricado outro tipo de vidro, criado por “designers” portugueses.
Entre eles destacam-se as colecções criadas pela arquitecta Carmo Valente e pela escultora Maria Helena Matos.
O museu do vidro já teve recentemente patentes ao público duas exposições, com peças destas duas designers Portuguesas.
Após o 25 de Abril, a F.E.I.S., torna-se empresa pública, (E.P.) mais tarde sociedade anónima, (S.A.), quando duma tentativa do Estado Português em a privatizar, em 1990.
Nessa altura sucederam-se os conflitos sociais internos a nível laboral, assim como as sucessivas mudanças de administração.
A F.E.I.S. foi encerrada por decisão do Conselho de Ministros em 15 de Maio de 1992. Era então Primeiro-ministro, o actual Presidente da Republica, Aníbal Cavaco Silva.
A Marinha Grande, jamais lhe irá perdoar!...
Com o encerramento da Fábrica Escola Irmãos Stephens, a Marinha Grande ficou órfão de pai e mãe. Este sentimento não é só meu, é o sentimento de milhares de Marinhenses, ou dos que não sendo Marinhenses, grupo onde eu próprio me incluo, foram adoptados por esta maravilhosa terra. O vidro corre-me nas veias em paralelo com o sangue!... O dia em que tive conhecimento da decisão de encerrar a F.E.I.S. foi dos piores dias da minha vida.
Para se poder analisar os números da crise que têm atingido o sector vidreiro, no subsector da cristalaria, apresento de seguida alguns dados para reflexão.
Nas décadas de 70 e 80, trabalhavam no sector cerca de 4000 trabalhadores. Só a Ivima, antes da crise de 1985/1986, tinha 1400 empregados.
Entre 1992 e 2006 encerraram 14 empresas de produção de vidro, entre elas a Marividros, empresa onde trabalhei 18 anos. Foram cerca de 2160 postos de trabalho que se perderam, são inúmeros os casos em que esta situação atingiu famílias inteiras.
Depois de uma grande tragédia, há que olhar em frente, ganhar ânimo, continuar a trabalhar e continuar a lutar porque a vida continua.
Actualmente existem em laboração 10 empresas, situadas no concelho da Marinha Grande, Alcobaça e Leiria. O conjunto destas empresas emprega actualmente cerca de 1100 trabalhadores.
Destas 10 empresas, apenas a Crisal da Marinha Grande e a Crisal Atlantis, fizeram parte do grupo das grandes empresas vidreiras anteriores à década de 80.
Gostaria de salientar que 90% da produção destas empresas se destina ao mercado Internacional: União Europeia, Estados Unidos, Brasil e Médio Oriente. A facturação anual oscila entre os 40 e os 50 milhões de euros.
Para já chega de escrita negativa. Vou tentar escrever a partir de agora sobre os aspectos positivos que a indústria vidreira tem tido ultimamente.
Durante as comemorações dos 250 anos da indústria vidreira em Portugal, em
13 de Dezembro de 1998, foi inaugurado o Museu do Vidro, pelo Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.
O museu está instalado no antigo palácio da família Stephens, edifício construído na segunda metade do século XVIII, que tem um traçado arquitectónico neo-clássico, sendo composto por três pisos e dois jardins.
No dia da inauguração, o encenador marinhense, Norberto Barroca, levou à cena uma peça de teatro alusiva à época dos Stephens. Em conjunto com o grupo de teatro do Sport Operário Marinhense, esteve a trabalhar ao vivo uma obragem do século XVIII, a convite da responsável do pelouro da cultura da autarquia Marinhense. Essa equipa de trabalho no vidro foi por mim organizada.

Em 1999, é criada a Região Demarcada do Vidro da Marinha Grande.
Para aproveitar comercialmente a criação da região demarcada, é também criada, no mesmo ano, a marca Mglass.
Com os 260 anos de história, a região agora demarcada do vidro da Marinha Grande, torna-se uma das mais antigas da Europa, na tradição vidreira.
A criação da marca Mglass, que no início reuniu 23 empresas de produção e transformação de vidro, apostou na inovação e no design. Vieram até ao vidro, jovens designers portugueses, com ideias novas, que se apoiaram na grande experiência dos vidreiros portugueses. Conseguiu-se criar uma colecção muitíssimo boa. Desde há muitos séculos que o vidro, conjuga, saberes, arte, beleza e cultura. Para mim é como magia trabalhar o vidro.

Três conjuntos de peças da colecção Mglass, produzidas na empresa Marividros, local onde trabalhei 18 anos.
A obragem (equipa produtiva), da qual eu era o responsável, produzia normalmente peças destas colecções.
A colecção 6º sentido é da autoria da designer Rita Melo.
Rita Melo, 31 anos, natural de Lisboa, possui o curso superior de Design Industrial. Ao desenhar para a Mglass, da Marinha Grande, uma colecção de mesa denominada "6º Sentido", viu o seu trabalho incluído na lista "Design 100" da revista americana "Metropolitan Home". Colecção que também foi galardoada com o prémio "Design Plus", na Feira de Frankfurt, Ambiente 2004.

“ O vidreiro recorre à capacidade artística que não é necessariamente limitada por constrangimentos técnicos. A colaboração entre o vidreiro e o designer relaciona o “saber fazer" com o “saber o que fazer".

Fez-se na altura uma grande campanha promocional, nomeadamente em Portugal e nos Estados Unidos.

Alguma maldição deve perseguir o vidro e a Marinha Grande. O que no início parecia a luz ao fim do túnel, tornou-se na realidade num pesadelo. A marca Mglass teve pouco tempo de vida. Muitas dificuldades, muitos gastos desnecessários, apostas de mercado falhadas, nomeadamente o mercado dos Estados Unidos, arrastaram-na para o fim, mas penso que não definitivamente.
No ano de 2000, foi criado o Crisform. As instalações definitivas foram inauguradas durante o 3º salão Internacional do vidro, em 17 de Setembro de 2005.

O CRISFORM é uma entidade de direito pública, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, cuja principal atribuição é promover actividades de formação profissional para valorização dos recursos humanos do sector da cristalaria.
O âmbito de intervenção do CRISFORM é nacional e a sua sede social será, em instalações próprias, na Zona Industrial da Marinha Grande.


O Crisform, Centro de Formação Profissional para o Sector da Cristalaria, desenvolveu este ano (2007), um projecto para tentar recuperar a marca Mglass.
Os jovens designers portugueses merecem, os vidreiros e a Marinha Grande também.
Este projecto foi executado por mim e pelo meu grande amigo José Rosa. Obrigado ao Crisform e à Sónia.


A Marinha Grande há muito que reclamava uma escola, onde se pudesse ensinar a trabalhar, aquilo que é a sua alma: o vidro.
Com o Crisform abrem-se outras perspectivas, em relação ao vidro. Aqui se podem ensinar a todos os interessados as mais diversas formas e técnicas de trabalhar o vidro.
Costumo afirmar que o Crisform, para mim, foi criado com 30 anos de atraso, digo isto, mais como um lamento. No que me diz respeito, tenho tentado aproveitar o tempo de atraso, aproveitar as oportunidades que me têm sido oferecidas, tanto para a minha valorização profissional, como intelectual.
A minha maior alegria era ver que esta minha postura seria seguida por mais profissionais do vidro, mas este objectivo ainda não está conseguido.
Vai ser um processo lento, mas penso que, aos poucos, os que trabalham o vidro, vão acabar por descobrir o Crisform.
O vidro chegou à Marinha Grande há 260 anos, foram muitos anos de trabalho, de sacrifícios e dificuldades, muitos anos de luta.
A história da Marinha Grande, a passada e a mais recente, é a história do abrir e fechar fábricas de vidro. Tenho 52 anos de idade, vivo e trabalho na Marinha Grande há 41 anos.
Já vi fechar muitas fábricas, já fiquei duas vezes desempregado em consequência desses encerramentos. Mas também já vi abrirem mais de uma dezena de novas unidades industriais para a produção de vidro, será que é a sina desta terra e a minha?!
Hoje, para mim, trabalhar o vidro já é uma questão de teimosia, NO FUNDO É UMA GRANDE PAIXÃO, PORQUE TRABALHAR O VIDRO É UMA ARTE MAIOR.


Para ajudar a dar a volta à crise, resolvi seguir as novas tendências e criar um site e um blog na Internet, para divulgar as minhas peças, atrair novos clientes e tornar o meu trabalho mais visível. Internet permite levar o meu nome e o trabalho que desenvolvo, a qualquer parte do mundo. Esta é uma ferramenta que alarga enormemente as possibilidades comerciais de qualquer empresa. Apesar da Internet ter, como sabemos, vários perigos (basta lembrar a pedofilia e as fraudes) tem também o benefício de tornar o Mundo mais ”pequeno” e ficarmos mais próximos uns dos outros, neste mercado global.
Esta é uma arte da qual não abdico e que desejo projectar para além do espaço restrito do meu local de trabalho, como o pode demonstrar o meu site: www.poeirasglass.com.sapo.pt e ainda o blog: www.poeirasglass.blogspot.com

2 comentários:

Unknown disse...

Amigo Poeiras
Fiquei fascinado com a tua historia de vida e da do vidro em Portugal.
Fiquei orgulhoso de te ter como amigo.
De um amigo que tambem adora Marinha Grande
Joao Carlos Tojeira Esteves
P.S. - primo do famoso vidreiro Basabia

folha seca disse...

Caro Poeiras

Só agora descobri o teu blogue, embora já conhecesse parte da tua vida, tambem fiquei fascinado por muitos outros pormenores que não conhecia. Ouve uma parte dessa tua vida em caminhamos lado a lado. Poucas vezes te tenho encontrado, mas há um sitio onde te vejo quase sempre e no dia certo, Na Praça Stephens na noite do 25 de Abril.

Felicidades e um grande abraço

R.H